13/03/2007

O Caminho Perdido por Manuel António Pina: "Há mais mundos?"

O risco maior do cepticismo, enquanto atitude intelectual e moral, é a vocação totalitária de todo o pensamento e toda a moral; se não nos mantivermos em estado de reserva mental em relação ao próprio cepticismo, quando dermos por isso somos prisioneiros e não indivíduos livres. Às vezes acontece- -me, como à Rainha de "Alice do outro lado do espelho", acreditar (eu, um céptico) em meia-dúzia de coisas impossíveis ainda antes do pequeno-almoço na liberdade, na beleza, na bondade. Ontem, em Serralves, passou "O caminho perdido", de Teresa Garcia, uma bela e inteligente curta-metragem onde um velho (ou um menino?) procura o caminho de casa e o encontra encontrando-se e desencontrando-se consigo mesmo. Não é o caminho de casa o que procuramos, perdidos também nós na secreta floresta do tempo e da memória? E, como no poema de Mark Alexander Boyd, não nos leva pela mão um cego guiado por uma criança? À saída de Serralves, mergulhando de novo da "Metropolis" quotidiana, sentia-me impossivelmente bem comigo e com o mundo. Talvez, quem sabe?, haja mais mundos. Num livro, numa obra musical, na obscuridade de uma sala de cinema, longe da gritaria comercial e mediática. Talvez até dentro de nós. Supondo (lá vens tu, cepticismo) que temos ainda "dentro".

Manuel António Pina
no Diário de Noticias, 12.03.2007